A narrativa da criação é um discurso teológico profundo sobre a vida e o mundo como um dom gracioso de Deus. O texto da criação não tem nenhuma pretensão de ser uma teoria científica, mas de uma prática concreta de existência onde a responsabilidade humana se entrelaça com a graça divina para gerar vida. Portanto, a fé na criação é um lembrete constante da abundância do amor divino que desafia a ganância e a escassez, convidando toda a humanidade a viver em harmonia com o cosmos ordenado que nos foi confiado.
Falar da criação é um discurso de fé, uma linguagem teológica e confessional, parte do pressuposto da crença, o texto está repleto de marcas do seu tempo que precisam ser analisadas com cautela para que o leitor não projete espontaneamente sobre o personagem divino, colocado como agente da criação, a ideia que ele próprio faz de Deus e da ação criadora.
Para uma boa interpretação da Bíblia, é importante respeitar o texto e entendê-lo como uma narrativa litúrgica a respeito de como o mundo deveria ser a partir do ato de criar de Deus, e como o mundo está caótico ao redor dos escritores e dos leitores da narrativa da criação. O mundo estava devastado e incapaz de frutificar antes da ação criadora de Deus.
A Nova Versão Internacional (NVI) é a tradução da Bíblia usada para esse estudo. Em sua nota de rodapé, os tradutores trazem uma segunda possibilidade de tradução para Gênesis 1.1-3: “Quando Deus começou a criar os céus e a terra ²sendo a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. ³Disse Deus: ‘Haja luz’, e houve luz.” Com a ideia de não projetarmos ao texto aquilo que queremos dele, essa possibilidade que trata o início como um momento em que Deus passa a operar com seu poder criador sobre uma terra sem forma e vazia, parece fazer mais sentido para um povo que via a maneira como as coletividades vizinhas explicavam o começo de tudo.
Para aqueles povos, o funcionamento do cosmos era muito mais importante do que a sua forma física ou composição química. O oceano primordial não é uma particularidade da criação dos israelitas, essa ideia do caos que vive sobre as águas, pertence ao imaginário comum das nações do antigo Oriente Próximo. A divindade vence o caos das águas primárias e organiza o mundo. Portanto, a preocupação dos escritos a respeito da criação, busca mostrar como o caos foi dominado e organizado pela divindade criadora.
Na memória dos israelitas, Gênesis 1.2 ganha contornos de oração principal, a terra estava sem forma e vazia. Quando Deus diz “haja luz” e a luz obedece, é o iluminar de uma devastação, de uma terra desolada e sem perspectiva de vida. Antes da iniciativa criadora de Deus a terra era desértica, vazia e incapaz de gerar vida, a terra nada produzia, era estéril, uma esterilidade primordial.
Com a sua palavra, Deus dá limites ao caos do oceano primordial, o verbo transforma a esterilidade em potência geradora de vida. Deus cria, no hebraico é o verbo Bara. Somente Deus é o agente desse verbo na Bíblia Hebraica, somente Deus transforma caos em ordem, morte em vida, trevas em luz, por intermédio do verbo a criação se fez como uma poderosa ação geradora de vida.
Deus passa a dizer e o caos precisa obedecer, o que antes era sem forma e vazio passa a ganhar sentido, tomar forma. Deus viu que a luz era boa e criou separação com as trevas, dia e noite criou, estava criando o tempo. Os dias se passam e Deus segue verbalizando e dando forma ao caos. O ápice da criação é a humanidade, o ser formado a partir da terra cultivável e que recebe o sopro de vida, e Deus viu que tudo era bom. No sétimo dia o criador descansa. Estava feito um mundo harmônico, a terra produzia alimento suficiente para humanos e animais, não havia falta!
Deus concedeu aos humanos o dom de dominar sobre a criação. Esse domínio deve refletir a suavidade do poder de Deus, que ordena o caos com uma palavra, sem a necessidade de uma batalha contra um deus do caos, como em outras narrativas. Portanto a humanidade é responsável pelo cultivo generoso e gracioso do mundo criado, o domínio não é um convite a uma ação predatória sobre tudo o que a terra dá, sobre os animais e, principalmente, entre os humanos iguais, a humanidade serve a criação com amor e a criação serve a humanidade em paz.
De forma suave Deus criou um mundo harmônico, uma melodia perfeita em que tudo tem sentido e propósito. Da terra brota o alimento abundante, os humanos servem e cultivam a criação de Deus no Éden. O mundo tem forma e não é mais desolado, agora a terra é produtora de vida e parceira da humanidade que deve crescer e se multiplicar. Não existe escassez, não existe domínio entre os humanos, não existe inveja, não existe egoísmo, não existe caos, a terra tudo dá e de todas as árvores a humanidade pode comer, exceto a árvore do conhecer bem e mal. Harmônico, um ciclo de vida gerado a partir do caos inabitado por intermédio do verbo de Deus.
Os escritores narram de forma bela a ideia da criação, não como um tratado científico, mas como uma narrativa de fé. O mundo está um caos ao redor, mas pela fé na criação o mundo precisa ser diferente. Deus criou harmonia, paz e abundância.
A fé na criação é um contraste com o mundo repleto de ameaças e desordem. Para os israelitas, em meio ao caos, era a certeza que Deus criou um mundo harmônico. A narrativa da criação traz à memória dos filhos de Deus que o Eterno não deseja apenas um mundo, mas um tipo específico de mundo generoso e alegre à bondade da vida. O relato da criação é um horizonte de fé para aqueles que amam a Deus.
É um discurso de fé olhar para o caos em nossa volta e mirar na ação graciosa da criação de Deus. Assumir a responsabilidade de domínio suave que foge da ganância da ação predatória sobre a natureza e os animais para benefício de humanos específicos. O mundo de Deus não foi criado para que alguns possam se estabelecer sobre o todo para seu próprio proveito.
O relato da criação não é uma teoria para provar o início de tudo, antes age como uma disciplina e uma ação prática de vida ou morte. A vocação humana é assumir a responsabilidade sobre o cosmo criado e ser cooperador de um mundo verdadeiramente humano pela doce ação do seu serviço. É assim que o ser humano se torna o que é, imagem de Deus.
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